sábado, 15 de maio de 2010

SOFRIMENTO HUMANO E O MISTÉRIO DA CRUZ


Costumamos pensar no sofrimento como algo que deve ser evitado a todo o custo, E não há nada que irrite mais determinadas sociedades do que a ideia cristã de que se deveria suportar a dor e o sofrimento, e mesmo entregar-se a eles, a fim de superá-los. Sofrer, dizia João Paulo II, é parte do mistério de ser homem. Por que é assim?

Hoje, o que se pretende é eliminar o sofrimento da face da terra. Para o indivíduo, isso significa evitar a todo o custo a dor. No entanto, precisamos enxergar também que é precisamente dessa forma que o mundo se torna muito duro e muito frio. A dor é parte do ser humano.
Quem quisesse realmente livrar-se do sofrimento, antes de mais nada teria que livrar-se do amor; não há amor sem sofrimento, pois o amor sempre exige certa dose de sacrifício: diante das diferenças de temperamento e dos dramas humanos, sempre trará consigo renúncia e dor.
Quando sabemos que o caminho do amor - esse êxodo, esse sair de si mesmo - é o verdadeiro caminho pelo qual o homem se torna humano, compreendemos também que o sofrimento é o processo pelo qual amadurecemos. Quem aceita interiormente o sofrimento torna-se mais maduro e mais compreensivo com as fraquezas dos outros: mais humano. Quem evita com pertinácia o sofrimento não é capaz de entender os outros: torna-se duro e egoísta. O próprio amor é uma paixão, isto é, algo que acontece conosco. No amor, a primeira experiência é uma alegria, um sentimento geral de alegria; mas, por outro lado, vejo-me arrancado à minha confortável tranquilidade e tenho que deixar-me reformular.
Se compreendermos que o sofrimento é o "lado de dentro" do amor, entenderemos também como é importante aprender a sofrer - e veremos por que, em sentido inverso, a fuga de todo o sofrimento torna a pessoa incapaz de lidar com a vida: cairia num  estado de vazio existencial, que só pode estar associado à amargura, à rejeição, e já não permite nenhuma aceitação interior nem nenhum progresso na direção da maturidade.

Joseph Cardeal Ratzinger

quinta-feira, 1 de abril de 2010

“Não terás parte comigo se não lavar os teus pés.”


Iniciamos o Tríduo Pascal, onde se concretizará o ápice da missão de Jesus através da paixão, morte e ressurreição.
A Quinta feira Santa é marca por dois solenes momentos: a missa do Santo Crisma, também a missa da Unidade e a Solenidade do Lava pés.
O ponto comum entre estes dois momentos da liturgia deste dia está na atitude de humildade em que Jesus conduz os fatos. Reunir na Catedral Diocesana o bispo, os presbíteros e diáconos, juntamente com religiosos, leigos consagrados e toda a comunidade católica para celebrar a Unidade da Igreja é o caminho para repetir o gesto de Jesus que lavou os pés dos discípulos.
Lavar os pés uns dos outros: não poderia haver testemunho maior que este gesto realizado às vésperas da paixão. A Igreja reunida com seus pastores precisa e deve tomar esta cena do lava pés colocando em prática nas paróquias onde se encontram os fiéis. Os ministros ordenados santificam seu ministério colocando-se a serviço da Igreja, dos mais necessitados. O ministério presbiteral não é para si, mas para toda comunidade que acredita e caminha.
O mesmo Senhor Jesus nos dá um testemunho idôneo da vocação ao serviço do mundo e da Igreja, que temos todos os fiéis quando decide lavar os pés dos seus discípulos.
E precisamos olhar com humildade para nossas atitudes e ter sabedoria para entender que temos muito pouco ou quase nada diante da imensidão do amor que Jesus transmitiu quando lavou e beijou os pés daqueles que os seguiam.

segunda-feira, 29 de março de 2010

QUANDO INCLINAMOS PARA SERMOS ELEVADOS

No Domingo de Ramos a Igreja se debruça sobre o Evangelho da Paixão segundo os Evangelhos Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas, neste ano, por exemplo, o de Lucas) e na Sexta-Feira Santa a liturgia se volta para o relato de João.
Pode parecer uma coincidência simplista, mas na verdade há uma dinâmica litúrgica que nos leva a caminhar para o centro do mistério da nossa fé: a Ressureição!
O Evangelhos sinóticos nos apresentam um Jesus humano. A divindade de Jesus passa pela humanidade plena. Jesus sofre como nós sofremos, sente como nós sentimos. Os relatos são permeados de exemplos dessa experência da fragilidade do corpo: Jesus sua sangue, chora, é preso, é traído, não consegue carregar a Cruz sozinho, têm medo... Os Evangelistas Sinóticos associam a Jesus a dor humana e o colocam diante da justiça terrena. Ele se inclina para ser elevado!
Já no Evangelho de São João, proclamado nas Sextas-Feiras Santas, Jesus é admirado sobre outra ótica pelo escritor sagrado. É um Deus forte! Senhor de todas suas ações! Não é preso, ele se entrega;  Não é julgado, ao invés, julga o juízo de Pilatos, não precisa de Cirineu para carregar a sua cruz, e também, Ele dá cronologia as suas ações, como que interpretanto as Escrituras. Por tudo isso é consciente e forte do seu caminho ao calvário! O Evangelho ainda relata a escuridão e o véu do Templo se rasgando para reafirmar a vitória do Messias, morto pelo projeto do Pai.
De tudo isso, podemos associar a nossa caminhada liturgica e missionária dessa Semana Santa. Somos frágeis, pecadores! Sentimos e fazemos nossas famílias e comunidades sentir dor pelo nosso pecado. Choramos a nossa luta, mas como Jesus caminhamos ao calvário para sermos de algum modo elevado. Mas, será que somos Senhores de nossas ações assim como o Cristo relatado no Evangelho de São João? Será que somos fortes o suficiente para assumir um projeto por mais pesado que ele seja?
A Sexta-Feira terá um fim. A Ressurreição surgirá para todos! Lembre-se: as marcas dos pregos ainda estarão ali presentes para que não esqueçamos jamais que de uma grande dor poderemos ressucitar um grande amor!

Ad majorem Gloria Dei!

Carlos Alberto Gonçalves

domingo, 28 de março de 2010

“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27,46).


O Domingo de Ramos abre por excelência a Semana Santa, a Semana Maior, pois, na Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor está o centro de toda a fé cristã católica.
Hoje celebramos a entrada de Jesus na cidade de Jerusalém que ao longo dos anos denominou-se como “entrada triunfal”. Para muitos, motivo de alegria, pois reencontrariam quem lhes concedeu milagres, para outros que já tinham ouvido falar sobre esse tal Jesus, também buscavam sinais miraculosos, queriam livrar-se das enfermidades do corpo, e de toda opressão, outros ainda, insatisfeitos com sua popularidade, tramavam contra ele.
“Hosana ao Filho de Davi. Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana nas alturas!”
Assim era aclamado Jesus, que montado num jumento percorria as ruas da cidade, e ali iria se deparar com o ápice da sua missão, pois nesse mesmo tempo comeria com seus discípulos a “última ceia”.
“Mestre faça com que eles se silenciem! Se eles se calarem as pedras falarão”.
Paralela a toda esta calorosa recepção, a inveja, a cobiça, o poder, o medo, a hipocrisia se fazia presente pelos doutores e mestres da lei e sacerdotes do templo que encontravam oportunidade perfeita para tramar a condenação de Jesus. Aquele que comia com os pobres, curava os leprosos, perdoava os pecadores jamais poderia ser o Messias prometido desde as desde o profeta Isaias, porque olhavam para o céu e de lá esperavam a vinda do Salvador sobre as nuvens com todos os anjos e santos, com poder e majestade.
Não queria um Deus que comesse com pecadores e impuros. O Deus que habitava o “Santo dos Santos”, iria reinar sobre a terra e eliminar todos os pecadores e raça impura. Jesus amava os pobres, concedia-lhes milagres pela fé que jorrava deles. Suas atitudes de bondade e misericórdia atraiam para ele multidões.
Pouco se esperava que esta mesma multidão que o aclamava, dias depois gritaria “crucifica-o, crucifica-o”. Manipulados pelo poder não enxergaram em Jesus a glória, não viam em suas mãos que curava e perdoava o cetro da realeza. Este homem não é o Messias.
Basta-nos nesta vida olhar com humildade para nossas atitudes e reconhecer que aquilo que buscamos pode não estar nos grandes acontecimentos da vida, mas na pequenez de um gesto que se tornará grande se acompanhado da gratuidade do amor, da amizade, da harmonia, da felicidade em ajudar.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Estava refletindo sobre o texto "SOBRE A SALVAÇÃO DA MINHA ALMA" de Rubem Alves. Lá o autor cita algumas palavras de Lutero, monge agostiniano, que por suas discordâncias foi "motivado" a iniciar a Reforma juntamente com várias justificativas político-economicas em seu determinado contexto.

Do ponto de vista religioso, e sem universalizar opiniões, acredito que Lutero fez um bem danado à Igreja! Até arrisco o palpite em dizer que ele não queria o cisma e a sua excomunhão. A história de Francisco de Assis muito pouco se difere da história de Lutero na sua essência! A diferença é que Francisco não sofreu retaliações maiores por pertencer a família nobre (mesmo que não fizesse uso do seu prestígio como bem sabemos). Acredito que se Lutero fosse Lutero pós Concílio Vaticano II seria elevado a honra dos altares!!!
Segue a breve reflexão de Rubem Alves sobre as palavras de Lutero:

"Acho que Cristo enche todos os espaços do universo. Lutero falava da ubiquidade do corpo de Cristo e dizia que ele está presente até na menor folha, muito embora nas folhas o nome dele não esteja escrito. Quem ama uma folha ama Cristo. Quem tem amor respira Cristo, mesmo que não fale o nome dele. Tiago diz que os demônios sabem tudo sobre Deus e, no entanto, são demônios. Os reformadores falavam no Christo absconditus – isso é, o Cristo escondido, invisível, sem nome, em toda a Criação. Quem ama, mesmo que não cite as Escrituras e nem saiba o nome de Cristo, está nele. Cristo não pode ser engarrafado em nomes religiosos. Isso seria heresia, negar a sua onipresença".


CONFERIR NA ÍNTEGRA:

http://www.rubemalves.com.br/sobreasalvaccaodaminhaalma.htm

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

PRESBYTERORUM ORDINIS - REFLEXÕES


“(...) os mais idosos (os presbiteros) recebam os mais novos como irmãos e ajudem-nos nos seus primeiros empreendimentos e encargos do ministério; esforcem-se por compreender a sua mentalidade, embora diferente, e ajudem com benevolência as suas iniciativas. Do mesmo modo, os jovens reverenciem a idade e experiência dos mais velhos, aconselhem-se com eles nas questões referentes à cura de almas, e colaborem de bom grado”



“Os presbíteros, finalmente, foram postos no meio dos leigos para os levar todos à unidade «amando-se uns aos outros com caridade fraterna, e tendo os outros por mais dignos» (Rom. 12, 10). É, pois, dever deles congraçar de tal maneira as diferentes mentalidades que ninguém se sinta estranho na comunidade dos fiéis. São os defensores do bem comum do qual têm cuidado em nome do Bispo, e simultâneamente reivindicadores da verdade para que os fiéis não se deixem enredar por qualquer doutrina (56). São-lhes confiados com peculiar solicitude os que se afastaram da prática dos sacramentos e sobretudo da fé, dos quais, como bons pastores, não deixarão de se aproximar”.


“Guiados, pois, pelo Espírito do Senhor que ungiu o Salvador e O enviou a evangelizar os pobres (53), os presbíteros, assim como os Bispos, evitem tudo o que possa de algum modo afastar os pobres, fugindo, mais que os restantes discípulos de Cristo, a toda a sombra de vaidade nas suas coisas. Disponham a sua habitação de maneira que não se torne inacessível a ninguém, e que ninguém, por mais humilde que seja, tenha receio de se abeirar dela”.





segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

O DIVINO TOCA O HUMANO - PE. BRUCE




Está chegando! Faltam poucos dias. Mais uma vez iremos celebrar o grande mistério da encarnação de um Deus. Gesto tão lindo de amor. É o divino que se reveste da nossa carne humana. E é exatamente por isso que a nossa condição humana pode tocar o divino, pode experimentar a graça divina.

Adoro quando chega o Natal. A noite mais linda de todas as noites. Deus amou tanto os pobres que se fez pobre também, desceu a terra e fez morada ente nós. Celebramos um Deus que quis se rebaixar á nossa condição, mas com esse gesto se tornou mais Deus ainda, pois quem tem a coragem de se fazer menor sempre carrega em si o dom de ser grande.

Deus está no meio de nós. Quem irá nos separar do seu amor? Nada e ninguém.

Junto com o natal chega-se ao fim de ano. Um ano marcado por alegrias, por tristezas, por vitórias, por derrotas, por lagrimas, por sorrisos, por nascimentos, por mortes, por chegadas e por partidas. Seja lá como foi este ano o importante é que ele aconteceu. Foi mais um ano de vida que Deus nos concedeu. Você aproveitou bem o ano de 2009? Viveu intensamente cada dia, cada segundo? O tempo está passando muito depressa, por conta da correria da modernidade, e é preciso viver intensamente cada segundo ao lado das pessoas que amamos. Onde está seu coração? Nas coisas ou nas pessoas? Seu tesouro está onde está seu coração.

Sei que este ano você aprendeu muito, assim como eu aprendi. Até mesmo na dor, pois a dor é um jeito estranho de crescermos e ganharmos maturidade.

E quando chega o fim de ano é sinal de que o outro começa. Siga em frente, respire fundo e comece 2010 com a coragem de quem acredita em si mesmo. Coisas lindas estão nos aguardando no próximo ano. Acredita nisso, pois aquilo que você acredita te domina. Pensamento positivo. Venha o que vier. Seremos vendedores de tudo aquilo que fizermos com amor. E se você quer amar prepare-se para a dor, pois o verdadeiro amor precisa passar pela dor.

Que seu natal seja abençoado e que você seja uma benção na vida das pessoas a começar pela sua família!




Padre Bruce Éder Nascimento
Paróquia Sagrado Coração de Jesus
Poços de Caldas - MG
Diocese de Guaxupé








domingo, 20 de dezembro de 2009

O PRESÉPIO (RUBEM ALVES)





Menino, lá em Minas, havia uma coisa, uma única coisa que eu invejava nos católicos: no Natal eles armavam presépios e nós, protestantes, tínhamos árvores de Natal. Mas as árvores, por bonitas que fossem, não me comoviam como o presépio: uma cabaninha coberta de sapé, Maria, José, os pastores, ovelhas, vacas, burros, misturados com reis anjos e estrelas, numa mansa fraternidade, contemplando uma criancinha. A contemplação de uma criancinha amansa o universo. Os católicos mais humildes tinham alegria em fazer os seus presépios. As pobres salas de visita se transformavam num lugar sagrado. As casas ficavam abertas para quem quisesse se juntar aos reis, pastores e bichos. E nós, meninos, pés descalços - os sapatos só eram usados em ocasiões especiais - peregrinávamos de casa em casa, para ver a mesma cena repetida.

Nós, meninos, com inveja, tratávamos de fazer os nossos próprios presépios. Os preparativos começavam bem antes do Natal. Enchíamos latas vazias de goiabada com areia, e nelas semeávamos alpiste ou arroz. Logo os brotos verdes começavam a aparecer. O cenário do nascimento do Menino Jesus tinha de ser verdejante. Sobre os brotos verdes espalhávamos bichinhos de celulóide. Naquele tempo ainda não havia plástico. Tigres, leões, bois, vacas, macacos, elefantes, girafas. Sem saber estávamos representando o sonho do profeta que anunciava um dia em que os leões haveriam de comer capim junto com os bois e as crianças haveriam de brincar com as serpentes venenosas. A estrebaria, nós mesmos a fazíamos com bambús. E as figuras que faltavam nós as completávamos artesanalmente com bonequinhos de argila. Tinha também de haver um laguinho onde nadavam patos e cisnes. Não importava que os patos fossem maiores que os elefantes. No mundo mágico tudo é possível. Era uma cena naif, primitiva, indiferente às regras da perspectiva. Um presépio verdadeiro tem de ser infantil. E as figuras mais desproporcionais nessa cena tranqüila éramos nós mesmos. Porque, se construímos o presépio, era porque nós mesmos gostaríamos de estar dentro dele. Éramos adoradores do Menino, juntamente com os bichos, as estrelas, os reis e os pastores - não importando que estivéssemos de pés descalços e roupa suja.

Eu sempre me perguntei sobre as razões por que essa cena, em toda a sua irrealidade onírica, mexe tanto e tão fundo comigo. Não sinto alegria ao contemplar a cena. Sinto uma tranqüila beleza triste. Gosto dela. É uma ausência aconchegante. O Drummond escreveu um poema chamado Ausência. Não sei a propósito de que - se era por causa de um amor perdido, de uma pessoa querida que estava longe - a saudade doía. E ele escreveu, para se explicar e consolar:

‘Por muito tempo achei que a ausência é falta./ E lastimava, ignorante, a falta./ Hoje não a lastimo./ Não há falta na ausência./ A ausência é um estar em mim./ E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,/ que rio e danço e invento exclamações alegres,/ porque a ausência, essa ausência assimilada,/ ninguém a rouba mais de mim.’

É isso: a cena - presente diante dos meus olhos - faz acordar uma ausência na minha alma. Daí a minha tristeza mansa. O presépio me faz lembrar algo que tive e perdi. Essa ausência tem o nome de ‘saudade’. Eu não tenho saudade. É a saudade que me tem. Mora, dentro de mim, a ausência de um presépio. Saudade é sentimento de quem ama e perdeu o objeto do amor. Quem não amou e não perdeu o objeto do amor não sente saudade. Pode ficar alegrinho. As muitas celebrações alegres - não revelarão elas que os celebrantes não sofrem de saudade? Celebram, talvez, porque na sua alma não mora a ‘ausência de um presépio’. Mas o que eu quero, mesmo, é fazer como o Drummond: aconchegar minha saudade nos meus braços. Porque saudade é um estar em mim. Assim, por favor, não tentem me consolar.

Vou transcrever um texto de Octávio Paz. É um dos meus textos favoritos. Por isso quero pedir que você o leia bem devagar. Contemple as vacas do presépio que ruminam sem pressa. Leia bovinamente, como quem rumina...

‘Todos os dias atravessamos a mesma rua ou o mesmo jardim; todas as tardes nossos olhos batem no mesmo muro avermelhado feito de tijolos e tempo urbano. De repente, num dia qualquer, a rua dá para um outro mundo, o jardim acaba de nascer, o muro fatigado se cobre de signos. Nunca os tínhamos visto e agora ficamos espantados por eles serem assim: tanto e tão esmagadoramente reais. Não, isso que estamos vendo pela primeira vez, já havíamos visto antes. Em algum lugar, onde nunca estivemos, já estavam o muro, a rua, o jardim. E à surpresa segue-se a nostalgia. Parece que recordamos e quereríamos voltar para lá, para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiquíssima e ao mesmo tempo acabada de nascer. Nós também somos de lá. Um sopro nos golpeia a fronte. Estamos encantados... Adivinhamos que somos de um outro mundo.’

Octávio Paz está descrevendo uma experiência mística: quando, de repente, as coisas banais do cotidiano se abrem como portas, e somos levados a um outro mundo. Pode ser um perfume indefinível, pode ser uma fotografia que já vimos vezes sem conta, pode ser uma música vinda de longe... De repente experimentamos ‘êxtase’ - estamos fora de nós mesmos, encantados - somos transportados para um mundo que nem sabemos direito o que seja. Já estivemos lá. Não mais estamos. E vem a nostalgia. Quereríamos voltar. A alma sempre deseja voltar. O mundo das novidades é o mundo do seu exílio.
O presépio faz isso comigo. Aconteceu de verdade? Foi desse jeito mesmo? As crianças sabem que isso é irrelevante. Elas ouvem a estória e são transportadas para ela. Pedem que a mesma estória seja repetida, do mesmo jeito. Não querem explicações. Não querem interpretações. A beleza da estória lhes basta. A beleza da estória é alimento para a sua alma. Os teólogos - que fiquem longe do presépio. Suas palavras atrapalham.
A cena do presépio exige a repetição. Há de ser as mesmas bolachas de mel, os mesmos bolos perfumados, as mesmas músicas... Comidas diferentes e músicas novas não têm nada a ver. São profanações. Não pertencem ao presépio. Houve um tempo em que eu tocava piano. Abandonei porque eu não tinha talento. Mas ainda me sobra uma técnica de principiante. Fui ao teclado e brinquei com os hinos antigos. Alguns deles soam como caixinhas de música, a serem cantados baixinho, como se para fazer uma criancinha dormir. ‘Pequena vila de Belém/ repousa em teu dormir/ enquanto os astros lá no céu estão a refulgir...’ A maravilhosa melodia tradicional Greensleeves, que aparece na letra ‘Quem é o infante que no regaço da mãe, tranquilo dormita?’ Depois, o mais querido: ‘Noite de paz, noite de amor! Tudo dorme em derredor...’ E a berceuse. ‘Sem lar e sem berço, deitado em capim...’ E há os hinos triunfantes que exigem os sons triunfantes do órgão que enchem o universo: Adeste Fideles, ‘Surgem anjos proclamando...’

A cena do paraíso é também uma cena maravilhosa e inspirou muitos artistas plásticos. Mas ela não me comove como a cena do presépio. Talvez porque no Paraíso não houvesse crianças. Não existe nada mais comovente que uma criança adormecida. Quem contempla uma criança adormecida tem de ficar bom, tem de ficar manso. Uma criança adormecida não pede festas: pede silêncio e tranqüilidade.

O presépio nos faz querer ‘voltar para lá, para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiquíssima e ao mesmo tempo acabada de nascer. Nós também somos de lá. Estamos encantados. Adivinhamos que somos de um outro mundo.’ Dentro de nós existe um presépio. Na mangedoura, dorme uma criança. O nome dessa criança é o nosso nome. Dorme em nós o Menino-Deus.

(Correio Popular, Caderno C, 24/12/2000.)











segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Dos Livros das Confissões, de Santo Agostinho, bispo


Ó eterna verdade e verdadeira caridade e cara eternidade! Instigado a voltar a mim mesmo, entrei em meu íntimo, sob tua guia e o consegui, porque tu te fizeste meu auxílio (cf. Sl 29,11). Entrei e com certo olhar da alma, acima do olhar comum da alma, acima de minha mente, vi a luz imutável. Não era como a luz terena e evidente para todo ser humano. Diria muito pouco se afirmasse que era apenas uma luz muito, muito mais brilhante do que a comum, ou tão intensa que penetrava todas as coisas. Não era assim, mas outra coisa, inteiramente diferente de tudo isto. Também não estava acima de minha mente como óleo sobre a água nem como o céu sobre a terra, mas mais alta, porque ela me fez, e eu, mais baixo, porque feito por ela. Quem conhece a verdade, conhece esta luz.

Ó eterna verdade e verdadeira caridade e cara eternidade! Tu és o meu Deus, por ti suspiro dia e noite. Desde que te conheci, tu me elevaste para ver que quem eu via, era, e eu, que via, ainda não era. E reverberaste sobre a mesquinhez de minha pessoa, irradiando sobre mim com toda a força. E eu tremia de amor e de horror. Vi-me longe de ti, no país da dessemelhança, como que ouvindo tua voz lá do alto: “Eu sou o alimento dos grandes. Cresce e me comerás. Não me mudarás em ti como o alimento de teu corpo, mas tu te mudarás em mim”.


E eu procurava o meio de obter forças, para tornar-me idôneo a te degustar e não o encontrava até que abracei o mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus (1Tm 2,5), que é Deus acima de tudo, bendito pelos séculos (Rm 9,5). Ele me chamava e dizia: Eu sou o caminho, a verdade e a vida (Jo 14,6). E o alimento que eu não era capaz de tomar se uniu à minha carne, pois o Verbo se fez carne (Jo 1,14), para dar à nossa infância o leite de tua sabedoria, pela qual tudo criaste.


Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! Eis que estavas dentro e eu, fora. E aí te procurava e lançava-me nada belo ante a beleza que tu criaste. Estavas comigo e eu não contigo. Seguravam-me longe de ti as coisas que não existiriam, se não existissem em ti. Chamaste, clamaste e rompeste minha surdez, brilhaste, resplandeceste e afugentaste minha cegueira. Exalaste perfume e respirei. Agora anelo por ti. Provei-te, e tenho fome e sede. Tocaste-me e ardi por tua paz.



(Lib. 7,10.18;10,27: CSEL 33,157-163.255) (Séc.V)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

CANTO E MÚSICA LITURGIA - CIC &1156 -1158

1156. «A tradição musical da Igreja universal criou um tesouro de inestimável valor, que excede todas as outras expressões de arte, sobretudo porque o canto sagrado, intimamente unido com o texto, constitui parte necessária ou integrante da liturgia solene» (24). A composição e o canto dos salmos inspirados, muitas vezes acompanhados por instrumentos musicais, estavam já estreitamente ligados às celebrações litúrgicas da Antiga Aliança. A Igreja continua e desenvolve esta tradição: «Recitai entre vós salmos, hinos e cânticos inspirados, cantai e louvai ao Senhor no vosso coração» (Ef 5,19) (25). Quem canta, reza duas vezes (26).

1157. O canto e a música desempenham a sua função de sinais, dum modo tanto mais significativo, quanto «mais intimamente estiverem unidos à acção litúrgica» (27),, segundo três critérios principais: a beleza expressiva da oração, a participação unânime da assembleia nos momentos previstos e o carácter solene da celebração. Participam, assim, na finalidade das palavras e das acções litúrgicas: a glória de Deus e a santificação dos fiéis (28).

«Como eu chorei ao ouvir os vossos hinos, os vossos cânticos, as suaves harmonias que ecoavam pela vossa igreja! Que emoção me causavam! Passavam pelos meus ouvidos, derramando a verdade no meu coração. Um grande impulso de piedade me elevava, e as lágrimas rolavam-me pela face; mas faziam-me bem» (29). (Santo Agostinho)

1158. A harmonia dos sinais (canto, música, palavras e acções) é aqui tanto mais expressiva e fecunda quanto mais se exprimir na riqueza cultural própria do Povo de Deus que celebra (30). Por isso, «promova-se com empenho o canto religioso popular para que, tanto nos exercícios piedosos e sagrados como nas próprias acções litúrgicas», de acordo com as normas da Igreja, «ressoem as vozes dos fiéis» (31). Mas «os textos destinados ao canto sacro devem estar de acordo com a doutrina católica e inspirar-se sobretudo na Sagrada Escritura e nas fontes liturgicas." (32)


CONFERIR:

"LIBERA" PERFOMANCE "SANCTUS"